Black Mirror — uma análise crítica sobre a construção midiática da realidade: Analisando ‘The Entire Story of You’

bia abreu
6 min readNov 12, 2020

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The Entire Story of You é o terceiro episódio da primeira temporada da série Black Mirror. Já em seus primeiros minutos, somos apresentados a um dispositivo implantado atrás da orelha das pessoas cujo objetivo é guardar todas as suas memórias visuais e projetá-las em telas através dos olhos.

Logo notamos que essa tecnologia de ponta, assim como toda arquitetura e atmosfera do episódio, visam maior funcionalidade para lembrar precisamente de momentos felizes ou para tornar mais lúdica a narração de histórias vividas, não passando por cima das rachaduras neuróticas que começam a aparecer na mente do protagonista, Liam.

Nas primeiras cenas já nos é sugerido algo peculiar: ao rever sua própria entrevista no taxi, notamos que a cena repetida por Liam possui sutis — quase imperceptíveis diferenças, se comparada a cena que acabamos de assistir do exato momento da mesma entrevista.

O personagem inclusive dá um zoom no rosto do entrevistador e repete mais de uma vez para tentar decifrar sua expressão corporal, demonstrando que é obcecado por tentar “ler” as pessoas em suas revisões. Sendo assim, em poucos minutos já temos pinceladas importantes daquele universo; não só do aparato tecnológico que permite gravar e reproduzir tudo que as pessoas veem, mas também das relações e comportamentos sociais em torno disso.

Ao longo de todo episódio a questão do armazenamento de memórias é discutida de diversas maneiras: trata-se de um roteiro de ficção científica que fala de um mundo específico e opressor a sua maneira, mas que caminha para um conflito de relações íntimas, para além do drama da — até então — suposta traição.

Subitamente a série nos convida a tentar decifrar o contexto de como a construção midiática das memórias é influenciada por produtos audiovisuais. Isto é, como o conceito de “verdade” atualmente está sempre atrelado a imagens, áudios, vídeos e o perigo de se apoiar nesta ideologia.

Por exemplo, no episódio, um homem em uma entrevista de emprego precisa tomar cuidado com o que faz em sua vida pessoal pois todos os seus dias dos últimos meses serão avaliados pela equipe da empresa que ele pretende trabalhar. Várias questões surgem a partir daí:

  • Que tipo de paranoias isso cria em um indivíduo?
  • Que comportamentos uma pessoa precisa ter para ser considerada “aceitável” em suas avaliações?
  • É possível se portar naturalmente, ser espontâneo e verdadeiro em uma vida que pode ser assistida por qualquer um a qualquer momento?
  • O que é privacidade? Nesse mundo, as pessoas são donas de sua própria privacidade?

Logo em seguida um anúncio sobre cheiro e memória começa a passar, expondo ainda mais o Universo que se passa o episódio, um mundo no qual memórias são produtos em um mercado tecnológico.

Ffion, a esposa de Liam, insiste que sua aventura com Jonas — um dos convidados do jantar onde estão todos juntos, não passa de uma história antiga. Mas Liam começa a ficar obcecado e confuso em meio a suas memórias, procurando por evidências de um caso, histórias de Jonas sobre rever antigos casos amorosos talvez, ou a risada involuntariamente entusiasmada de Ffion para uma piada incômoda de Jonas. O gravador de memória de Liam permite que ele arranhe, literalmente, uma pulga atrás da orelha que para o resto de nós está, felizmente, fora do alcance.

A quase ausência de trilha sonora e as constantes cores pálidas, frias, escuras — exceto pela meia de Liam; o mesmo par vermelho usado em todas as cenas — contribuem para uma sensação sufocante de tensão e paranoia, tão influentes que levam Liam a encontrar “a verdade”.

O poder de sua suspeita fez com que ele olhasse para cada detalhe e conseguisse encontrar evidências de que Ffion e Jonas tiveram de fato um caso, no canto do catálogo de memórias de Jonas.

Como é frequente para a ficção científica, a história completa é explorada através de armadilhas de uma tecnologia supostamente futura. Dado o nosso desejo atual de compartilhar partes cuidadosamente selecionadas de nossas vidas pessoais na Internet, a ideia de que as pessoas no futuro gravam e compartilham memórias não está nada distante, e a forma como o episódio mostra isso é bastante convincente e extremamente estranha.

Há uma convidada no jantar que não possui “grão” (como é chamado o dispositivo que armazena memórias) e o diálogo em torno dela indica que as pessoas realmente não sabem mais como é viver sem grão.

O paralelo traçado entre o grão para aquele universo futurístico e as redes sociais para o universo atual, do espectador, fica muito claro. Em um dado momento, a anfitriã do jantar afirma que “memórias orgânicas são armadilhas, com o grão, você tem a verdade”, verbalizando a questão principal do episódio: se memórias orgânicas são armadilhas, por que suas reproduções não seriam? E acima de tudo, quem quer a verdade?

“Trata-se de pensar de que modo a projeção do filme se duplica, circulando entre a tela da sala e a tela mental do espectador. Duplo sentido da palavra “tela”, em que o movimento do filme em direção ao outro, à audiência, colabora de forma errática, porém decisiva, na construção de imaginários de pertencimento.” Cinema, globalização e interculturalidade. P. 13.

É desta forma que a série aponta um espelho para nós que assistimos. As narrativas tradicionais de ficção científica tendem a imaginar o poder tecnológico concentrado nas mãos de um ditador excêntrico; mas Black Mirror nos lembra que o poder está conosco cada vez que ligamos nossos smartphones, distorcendo a pessoa humana e dando vazão a impulsos que poderiam ter sido inexplorados.

“A questão da memória é definida num jogo constante de posicionamentos no espaço e no tempo, de deslocamentos e de contato/ação entre sujeitos, sendo esse universo de reposicionamentos contínuos o próprio terreno da experiência.” Cinema, globalização e interculturalidade P. 14.

O episódio também não dramatiza ao expor uma das mais arrepiantes tendências da nossa sociedade: documentar cada vez mais nossa vida pessoal para a posteridade.

A transformação do cotidiano em uma espécie de performance, um universo onde cada memória é gravada transformam o mundo onde as pessoas estão cada vez mais desempenhando um papel, e a arte direcionando a vida cotidiana em um esforço para garantir que suas memórias sejam exatamente uma foto Instagram posada do Instagram.

A última cena do episódio é tão emblemática quanto toda sua narrativa.

Pela primeira vez depois de quase uma hora de episódio, enxergamos Ffion. Ainda pela perspectiva de Liam, a cena de 1 segundo dos olhos da sua esposa denuncia o vislumbre uma verdade até então oculta: a verdade da própria Ffion.

Em um flash de instante nos questionamos até que ponto nossa visão de Ffi é imparcial se toda a história nos é apresenta nesta perspectiva: a de Liam. A última frase do roteiro resume, por fim, todo a mensagem do episódio: “the memories are dead”.

Bibliografia

BAZIN, André. O Cinema — Ensaios — VII A evolução da linguagem cinematográfica

DANEY, Serge. Antes de tudo, claro, o medo

BROWNE, Nick. Análise sobre “No Tempo das Diligências”

FRANÇA, Andréa; LOPES, Denilson. Cinema, globalização e interculturalidade

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bia abreu

escrevo para que não me engasgar com palavras não ditas.