Uma análise sobre a peça “Roda Viva” de Chico Buarque

bia abreu
6 min readNov 11, 2020

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Esse texto visa propor uma análise da peça teatral Roda Viva, escrita por Chico Buarque de Hollanda no final de 1967 e dirigida por José Celso Martinez Corrêa em sua montagem oficial, no início de 1968.

O espetáculo, que estreou Chico Buarque na área da dramaturgia, foi lançado à público no período da Ditadura Militar e sofreu grande repressão e censura devido ao seu cunho sócio político. Esse fato me lembrou certa frase de Baktim, que me fez relacionar com o contexto da época:

“o mundo infinito das formas e das manifestações do riso opunha-se à cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época”. (ENNE e LACERDA, 2011)

A peça conta a história de um artista, inicialmente chamado de Benedito da Silva, que decide mudar de nome para agradar ao público, em um contexto de ascensão da indústria televisiva no Brasil e hegemonia americana. A partir da história do ídolo que demonstra ser uma figura leviana e manipulada pela imprensa, a obra promove uma reflexão sobre a sociedade de consumo e a indústria cultural internacionalista vigente na época.

Em sua estreia, participaram do elenco Marieta Severo, Antônio Pedro e Heleno Prestes nos papéis principais. Após o sucesso, a obra virou um símbolo de resistência contra a Ditadura Militar e, neste ano de 2019, dois meses após a posse do declarado admirador da “Reforma Militar” — presidente Jair Bolsonaro — foi remontada por Zé Celso e o Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona a fim de lembrar ao público do poder da arte como forma de resistência e luta.

Com quase quatro horas de peça, a obra chegou este ano ao Rio de Janeiro sob uma campanha de financiamento coletivo para ajudar a bancar a produção, que está sendo custeada a partir de empréstimos, por conta do corte de verba à cultura implementado pelo Governo vigente. Mas assim como escreveram Ana Enne e Andressa Lacerda em Gírias, hibridizações, negociações, negociações: o discurso como objeto e lugar de disputas na arena da cultura:

Dentre estas formas e manifestações a cultura, a linguagem seria instrumento fundamental de invenção e inversão, poder criador e potencial destruidor, capaz de inovar sem perder o contato com a realidade dada, propor rupturas sem desligar-se por completo da ordem instaurada a qual pretendia subverter, mas da qual também iria beber. (ENNE e LACERDA, 2011)

E relacionado com linguagens, considero além da oral e escrita, também a corporal e a musical — presentes na obra Roda Viva, que assim como o texto, propõe rupturas ao sistema através da arte e da reflexão sobre histórias subjetivas presentes no enredo da peça.

A HISTÓRIA DA PEÇA

A peça é dividida em dois atos, o primeiro contando a ascensão e o seguindo a queda do artista Benedito da Silva, que posteriormente passou a adotar o nome de Ben Silver.

Benedito da Silva é um cantor sem nenhum talento que foi engolido pela indústria do entretenimento. Após conhecer o Anjo, que é uma espécie de empresário explorador e mau caráter, Benedito vira um artista aclamado e um ídolo cultuado por inúmeros fãs: muda seu nome para Ben Silver, um nome com cunho americanizado que o leva ao sucesso e gera tamanha propaganda.

No segundo ato, após sua queda no mercado da fama, Benedito muda de estratégia e passa a atender pelo pseudônimo de Benedito Lampião. Começa então a encarnar a figura de ídolo nacional: um músico brasileiro, reacionário, que se diz homem do povo, mas que vai cantar nos Estados Unidos.

O Anjo cobra 20% por este serviço de agenciamento e é um grande amigo do Capeta e, por isso, vive dando dinheiro a ele para que ele não suje a imagem de Benedito. Vemos aí que o Anjo dá forma aos tantos empresários charlatões que habitam a indústria do entretenimento, enquanto o Capeta representa a mídia que critica e expõe a vida do outros.

No final, Benedito da Silva acaba mudando de nome duas vezes, para o “bem” de sua imagem e propaganda e é levado a cometer suicídio por não conseguir lidar bem com a pressão, as consequências e o fardo que a indústria da fama lhe causaram.

Como Enne e Lacerda falaram no seu artigo, a luta pelo discurso é central na constituição de um grupo, de sua entrada em cena e da sua possibilidade de participar mais claramente do poder político e cultural, consolidando assim sentidos e posições públicas.

A peça é considerada uma comédia musical pelos elementos que seus personagens representam, por apresentar músicas ao fundo e por conter músicos e coro. Inclusive, vale ressaltar que o coro, os músicos e o público (já que se trata de uma peça interativa), embora pareçam ser meros figurantes, são os responsáveis por exercer comentários, críticas e até julgamentos dentro da peça, ou seja, dão à ela um tom crítico, mas de forma implícita.

Parafraseando Roger Chartier em seu texto O mundo como representação, uma relação decifrável é postulada entre o signo visível e o referente significado — o que não quer dizer que é necessariamente decifrada tal qual deveria ser.

Repleta de denúncias aos bastidores do show business, a obra ficou famosa pela sua agressividade proposital, que visava chocar o público para os problemas que cercavam o país na época. Foi considerada imoral, obscena, subversiva, sensacionalista e foi feita na base da improvisação, o que para a época era inadmissível, já que sofria alterações constantes e essas estavam publicamente proibidas pelo regime ditatorial.

Com certeza, a obra foi censurada por denunciar a indústria de entretenimento e a mídia televisiva que naquela época, era controlada pelos militares. Portanto, criticar a mídia era, consequentemente, criticar a ditadura.

Por isso, em julho de 1968, um grupo de vinte pessoas ligadas ao CCC (Comando de Caça aos Comunistas) invadiu o Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, depredou o cenário e agrediu os atores em cena. E, como Stuart Hall disse em seu texto “A centralidade da cultura”,

Seja o que for que tenha a capacidade de influenciar a configuração geral da cultura, de controlar ou determinar o modo como funcionam as instituições culturais ou de regular as práticas culturais, isso exerce um tipo de poder explícito sobre a vida cultural. (HALL, 1997)

Relacionando a obra com o nome da peça, que também nomeia a música de 1974, remete a um fatalismo dos dias, devido ao fato de que o sistema capitalista tudo devora, e sempre em proporções gigantescas, sobretudo os sonhos, as ideias e modos de pensar das pessoas.

“A gente quer ter voz ativa,

No nosso destino mandar!

Mas eis que chega a roda-viva

E carrega o destino pra lá…”

Para terminar, irei concordar com as ideias de Enne e Lacerda de que a potência cultural do criar pode se transformar em poder político de selecionar, de resistir, de incluir, de excluir, de marcar território, delimitar pertencimento, subjugar, enfrentar, empoderar sujeitos potencialmente criativos via os mais diversos sistemas de vivenciar sua subjetividade plenamente. Viva a cultura brasileira, a resistência, a luta de todos os grupos excluídos e diminuídos pelo sistema. Resistiremos!

BIBLIOGRAFIA:

— ENNE, Ana e LACERDA, Andressa. “GÍRIAS, HIBRIDIZAÇÕES, NEGOCIAÇÕES, NEGAÇÕES: O DISCURSO COMO OBJETO E LUGAR DE DISPUTAS NA ARENA DA CULTURA”. ENECULT, 2011.

— CHARTIER, Roger. “O mundo como representação”. IN: Estudos Avançados, 11 (5), 1991.

— HALL, Stuart. “A centralidade da cultura. Notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo”. IN: Educação & Realidade, n. 22, v.2, 1997.

— Roniel Sampaio Silva. Café com Sociologia, 2018. Disponível em: . Acesso em: 13/12/2019.

— Estela Santos. Homoliteratus, 2016. Disponível em: . Acesso em: 13/12/2019.

— Gustavo Cunha. O Globo, 2019. Disponível em: . Acesso em: 13/12/2019.

— Eduardo Carli de Moraes. A casa de vidro, 2019. Ementa (descrição). Disponível em: . Acesso em: 15/12/2019.

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bia abreu

escrevo para que não me engasgar com palavras não ditas.